terça-feira, 3 de janeiro de 2017

La Divina in cucina – receitas de Maria Callas


Feliz, feliz 2017! É o que eu desejo a todos vocês. Espero que tenham se divertido com as festas de fim de ano. Eu me recolhi e acho que foi melhor assim. E cá no meu cantinho tive minhas delícias para comer e beber, e boa música para ouvir. E é justamente sobre música que este post tratará.
Nos últimos dias de 2016 e nos dois primeiros dias de 2017, uma música tem virado obsessão para os meus ouvidos: uma ária da ópera Norma, de Belline, chamada Casta Diva, e imortalizada por Maria Callas, La Divina. 


Não consigo descrever o que essa música causa em mim, mas é arrebatador. Talvez seja o dom único do timbre raro de soprano absoluto que Callas detinha, ou, quem sabe, uma certa melancolia de fim de ano, não sei. Mas para iniciar este texto, e fazer diferente do que  faço colocando  uma dica de música no final de cada postagem, deixo a interpretação de Callas para Casta Diva, para que ouçam e entendam do que falo.



É linda, não?!  E essa minha obsessão por Casta Diva me fez revirar a biografia de Callas e me deliciar com tanta força. Mergulhei numa história cheia de altos e baixos, glamour, música e comida, muita comida – as melhores, por sinal.
Quando Maria Callas soltava sua voz única e cortante para dar vida a heroínas trágicas, dramáticas e exageradamente apaixonadas ela ganhava o coração de muitos espectadores pelo mundo com seu talento raro. A mídia àquela época a definia muitas vezes como temperamental, excêntrica e inatingível. Mas, já dizia o primeiro marido, Giovanni Batista Meneghini, que Maria Callas era “obsessiva pelas panelas, além da música”. Já Onassis, seu grande e único amor, muitas vezes a definia como “descontrolada”.


Callas preparando suas delícias.
Nascida em Nova York, Maria Anna Sofia Cecilia Kalogeropoulo (em grego Μαρία Καικιλία Σοφία Άννα Καλογεροπούλου) tinha sangue grego correndo nas veias, e seu coração pulsava num compasso dramático Não trazia ela boas recordações da infância: a mãe insensível e agressiva, nunca gostou dessa filha caçula, pois sempre sonhou ter um menino. Quando soube que havia dado à luz uma menina, ela simplesmente se recusou a conhecer a criança e demorou quatro dias para olhar nos olhos da criança recém-nascida.
Callas começou a cantar ainda bem pequena, e aos 13 anos viajou para Atenas para estudar com a famosa soprano Elvira de Hidalgo. Em 1947, conseguiu seu primeiro grande papel e interpretou La Gioconda em Verona, Itália.Sua ascensão foi rápida e os palcos de todo o mundo se renderam ao talento único da jovem soprano.
Callas possuía uma voz poderosa possuía amplitude fora do comum. Isto permitia à cantora abordar papéis desde o alcance do mezzo-soprano até o do soprano coloratura. Com domínio perfeito das técnicas do canto lírico, possuía um repertório incrivelmente versátil, que incluía obras do bel canto (Lucia di Lammermoor, Anna Bolena, Norma), de Verdi (Un ballo in maschera, Macbeth, (La Traviata) e do verismo italiano (Tosca), e até mesmo Wagner (Tristan und Isolde, Die Walküre).


Callas na pele de Turandot, de Puccini. 

Apesar destas características, Callas entrou para a história da ópera por suas habilidades cênicas. Tendo a habilidade de alterar a "cor" da voz com o objetivo de expressar emoções, e explorando cada oportunidade de representar no palco as minúcias psicológicas de suas personagens (chegando a exagerar), Callas mostrou dramaticidade mesmo em papéis que exigiam grande virtuosismo vocal por parte do intérprete - o que usualmente significava, entre as grandes divas da época, privilegiar o canto em detrimento da cena.
Muitos consideram que seu estilo de interpretação imprimiu uma revolução sem precedentes na ópera. Segundo este ponto de vista, Callas seria tributária da importância que assumiram contemporaneamente os aspectos cênicos das montagens. Em particular, é claramente perceptível desde a segunda metade do século XX uma tendência entre os cantores em favor da valorização de sua formação dramatúrgica e de sua figura cênica - que se traduz, por exemplo, na constante preocupação em manter a forma física. Em última análise, esta tendência foi responsável pelo surgimento de toda uma geração de sopranos que, graças às suas habilidades de palco, poderiam ser considerados legítimos herdeiros de Callas, tais como Joan Sutherland ou Renata Scotto.
A carreira internacional de Callas começou em 1947, quando se esperava que os cantores de ópera estivessem acima do peso. Mas, aos 108kg, sentiu-se miserável e se considerava feia e indigna de amor. Quando o diretor Luchino Visconti lhe disse para perder 30kg antes que ele trabalhasse com ela, ela perdeu 40kg. Ela então passou a perder outros 8kg. 


Uma das raras imagens de Maria Callas, ainda gorda, na estréia de Norma, em Covent Garden, em 1952.
Segundo a lenda, a enorme perda de peso de Callas ocorreu porque ela deliberadamente engoliu uma tênia. Bruno Tosi, presidente da Associação Internacional Maria Callas, afirma que ela precisava de tratamento para vermes, possivelmente por causa de sua paixão por bife cru, mas ela baixou o peso seguindo uma dieta baseada no consumo de iodo. "Foi um tratamento perigoso porque afetou o sistema nervoso central e mudou seu metabolismo, mas ela se transformou em um belo cisne".



Ela nunca se empanturrava com massa e favorecia refeições com pouca carne ou steak tartare. Durante todo o tempo - e durante o seu romance com o magnata grego Aristóteles Onassis - ela recolheu receitas: omeletes de tomate, vitela l'oriental, molho bechamel com alcaparras, molho de mostarda, bolo dourado, chocolates e um bolo que ela chamava 'meu Bolo " (cuja receita segue abaixo com o nome de Torta Paradiso di Maria Callas, nome ao qual o bolo ficou mundialmente conhecido). Callas raramente bebia vinho, mas gostava de champanhe porque era menos calorífico. "Ela era como muitas mulheres, lutando sua vida inteira com seu peso".
A paixão avassaladora por Aristóteles Onassis representou sua ruina. Depois de largar a carreira para viver o grande amor pelo armador grego, saboreou o desprezo e a traição. Foi trocada por Jacqueline Kennedy, com quem ele se casou em outubro de 1968.
Solitária e deprimida, passou a viver trancada em seu apartamento em Paris. A voz que lhe rendeu a fama, já amargava sinais de desgaste. Continuou gravando novos álbuns, deu aulas na famosa Julliard School de Nova Iorque e isolou-se dos eventos sociais e até do convívio dos amigos.
Callas morreu sozinha, em seu apartamento de Paris, no dia 16 de setembro de 1977. Os médicos atestaram que ela foi vítima de um infarto fulminante. Quando o cortejo levando seu corpo percorreu a rua Georges Bizet, onde vivei, centenas de admiradores se despediram da estrela aplaudindo e repetindo a saudação que ela tanto adorava ouvir ao deixar o palcos após uma apresentação: “Bravo Callas!, Bravo Maria!”. Dois anos depois, na primavera de 1979, suas cinzas foram lançadas no Mar Egeu. Seu túmulo permanece no famoso cemitério Père Lachaise, em Paris.
Não há dúvida que Maria Callas teve três grandes paixões em vida: a música, Aristóteles Onassis e a boa mesa, recheada de iguarias, e que nem precisavam ser lá tão finas assim. Maria Callas cultivou sua paixão por saborear bons pratos e seu hobby era colecionar receitas colhidas pelos quatro cantos do mundo. Era comum encontrá-la a trocar ideias com maitres ou cozinheiros dos restaurantes famosos por onde ela passava, ou às donas de casa de quem, não raro, era convidada. Sempre tentando descobrir os segredos dos menus que mais lhe encantavam.


Callas e Onassis
Callas transcrevia-as com extremo rigor em minúsculas folhinhas de papel, que depois passava às mãos da fidelíssima Elena Pozzan, sua camareira e cozinheira pessoal da vida inteira. Depois, nos últimos anos em Paris, entregava-os ao mordomo e chofer Ferruccio Mezzadri, a pessoa que esteve mais próxima da artista ao longo de vinte anos, até o último dia de sua vida, com total devotamento. Não bastasse isso, Callas adorava recortar receitas publicadas em jornais e revista, as quais colava em cadernos montados com capricho, ainda colecionava almanaques culinários e montou uma cobiçada biblioteca gastronômica com inúmeros títulos raros.


Uma das muitas anotações culinárias de Callas. Fonte: Associação Internacional Maria Callas 

Maria Callas tinha nesse hobby quase uma obsessão: adorava juntar receitas publicadas pelos cadernos femininos e pelas revistas mais difundidas e populares, começando, no final da década de 40 e na de 50, pela Domenica del Corriere ou pela Annabella. E até quando estava em viagem, para suas apresentações, de teatro em teatro, todos os dias recortava receitas também dos jornais europeus e americanos por onde passasse.
Não se pode deixar de mencionar aqui que, além disso, ela possuía inúmeros livros de cozinha, em todas as línguas, que formavam uma verdadeira biblioteca. Os primeiros, ela os ganhara da sogra Giuseppina, quando ainda era noiva de Giovanni Battista Meneghini (1949). 


Callas e Giovanni Battista Meneghini 

“Titta”, apelido carinhoso do marido, era realmente um bom garfo e Maria tinha de ser para ele uma cozinheira habilidosa. E assim na cozinha da rua San Fermo, sua primeira casa em Verona depois do casamento, tinha uma longa prateleira repleta de textos, a começar pelos clássicos da cozinha italiana, o mítico Artusi, Il talismano della felicità (O talismã da felicidade) de Alda Boni e a coletânea de receitas de Petronilla, da Domenica del Corriere.”
Conhecida afetuosamente como "La Divina" por sua voz angélica, Callas coletou receitas de seus restaurantes favoritos em todo o mundo, 150 das quais podem ser encontradas no livro de receitas italiano “La Divina Em Cucina - Il Ricettario Segreto di Maria Callas”.


O livro não é apenas composto por receitas inventadas pela fome da soprano, mas contem boa parte das receitas que grandes chefs inventaram para ela, em sua honra: de Arrigo Cipriani a Rolando Lami. de Nicola Rosato a Mario Zorzetto, chef de cozinha do iate da família Onassis, o Christina; e os pratos que Ferruccio Mezzadri, seu fiel mordomo / assistente pessoal inventou, além das receitas criadas pela própria Callas. No livro, inclusive consta, as receitas do primeiro jantar da fatídica noite de 3 de setembro de 1959, no Danielli, em Veneza, quando ela (" Consommé gelé en tasse, Flamingo shrimps, Chicken Soumaroff, strawberry soufflé").
O amor por Onassis instigou ainda mais os dotes culinários de Callas: certa vez, quando a soprano descobriu que Onassis gostava de impressionar seus convidados com receitas atribuídas a Giacomo Casanova, famosos aventureiro e conquistador italiano, ela tratou de aprender a preparar as tais receitas e se especializou nas Ostras à Casa Nova – iguaria afrodisíaca preferida do conquistador italiano, ao ponto de eles passarem a ser chamadas de Ostras à Callas. Daí para a frente, ela passou a preparar o prato e servir para o amado durante as viagens que faziam no iate particular do empresário, o Christina.
Callas enchia sua bolsa com pedados de papel nos quais escrevia receitas de forma minuciosas. "Ela adorava comida, especialmente bolos e pudins, mas vivia principalmente em bife e salada", afirma Bruno Tosi, especialista na vida de Callas Bruno Tosi, e responsável pelo livro com as receitas coletadas primeiramente lançadas na Itália, mas já com tradução para o português.


Por fim, indico a leitura do livro citado e deixo abaixo, duas receitas interessantes e fáceis das que Maria Callas mais preparava para se deleitar. Preparem as receitas ouvindo o som de La Divina e deixem tudo mais gostoso.


Ostras À Maria Callas

A receita abaixo é tirada das memórias de Casanova e ligeiramente adaptada pela adição de água à massa, sugerida por  Callas.
24 ostras
2 limões
Salsa picada
1 gema de ovo
1 colher de sopa de farinha de trigo
3 colheres de agua gelada
Sal e pimenta preta a gosto
Azeite ou óleo para fritar

Preparo: Abrir ostras e remover os músculos da casca. Salve metades das conchas das ostras mais bonitas para servir o preparado depois de pronto. Desencaixe a ostras de dentro da concha, adicione o suco de limão, 3/4 de salsa picada e um pouco de pimenta. Marinar na geladeira por 15 minutos. Usando um garfo, bata levemente a gema de ovo com um pouco de sal e 3 colheres de sopa de água gelada, misture a farinha e deixe descansar na geladeira por 10 minutos. Despeje a massa sobre ostras marinadas e mexa suavemente. Enquanto isso, aqueça o óleo em uma panela funda para fritar. Fritar as ostras apenas para que a mistura de gema batida se torne crocante (que é apenas um minuto ou até menos), em seguida, deixe escorrer em papel toalha, servir em seguida, servida na concha e decorada com salsa e limão.

Torta Paradiso Di Maria Callas

300 gramas de manteiga derretida
3 gemas
3 ovos
300 gramas de açúcar
100 gramas de farinha
200 gramas de amido de milho (maisena)
1 colher de chá de fermento em pó
1 colher de chá de extrato de baunilha
Raspas de 1 limão
1 pitada de sal
Açúcar de confeiteiro para polvilhar

Preparo: Em uma tigela coloque os ovos, gemas e o açúcar e bata na batedeira por aproximadamente 10 minutos, você terá que obter um bem montado e fofo, pré-aqueça o forno a 180 ° C. Sempre batendo, adicione ao creme a manteiga derretida e bata até incorporar bem, adicione a casca ralada de limão, a farinha, o fermento em pó e baunilha. Unte uma forma de 24cm com manteiga e enfarinhe, despeje a mistura do bolo e leve para assar por cerca de 40 minutos, ou até dourar. Faça o teste do palito para saber se o bolo está pronto. Deixe esfriar, desenforme e polvilhe com açúcar de confeiteiro. Servir.